Nos tempos do lança-perfume

Carnaval, uma tradição venerável, uma festividade adorada
que tem a significação de um desafogo na existência árida do brasileiro.
(Gilberto Amado)

Por Cesar Vanucci *

A proximidade do chamado “tríduo momesco” – expressão, diga-se de passagem, inadequada para definir a folia de mês inteiro que estremece hoje os redutos baianos – cria ensancha oportunosa (como era hábito dizer-se em tempos de antigamente) para relembrar carnavais que passaram.

Vai ter quem reclame, por certo, da postura saudosista deste escriba. Mas nem por isso – tá bem? – vou deixar de dizer que os carnavais de outrora, dos bons e irrecuperáveis tempos de uma juventude já transitada em julgado, eram infinitamente mais joviais e prazerosos. A alegria rolava solta, em clima de total descontraimento, em salões decorados com esmero na base da serpentina, balões, máscaras, figuras de cartolina, bonecos sustentados em estruturas de madeira, com farto emprego de papel machê, tinta, algodão e lantejoulas.

A esmagadora maioria dos foliões, incluídas aí patotas familiares inteiras, fazia dos clubes o centro preferencial de diversão no período dos festejos. Os arrelientos, com seus excessos cervejeiros, estragavam, por vezes, o prazer alheio. Mas, para a tranquilidade geral, não passavam, na verdade, com suas aprontações barulhentas, de uma minoria. Manjados por todos, eram, tanto quanto possível, mantidos à distância nas evoluções graciosas, ao som da batucada, dos pares e blocos pelas pistas dançantes. Um montão de gente, abstêmios de berço, participava dos folguedos sem ingerir, ao longo dos quatro dias, uma gota sequer de bebida alcoólica. O que não os impedia de competir em animação com a majoritária parcela dos que vertiam bebida com moderação, como é recomendado hoje, de pura mentirinha, em tudo quanto é intervalo de tevê, na tradicional litigância publicitária das cervejarias.

Naqueles tempos ainda – e a revelação, como já comprovei é de molde a espantar os mais moços – nenhum carnavalesco que se prezasse abria mão de trazer ao alcance, para pronto uso, o seu tubo de lança-perfume. De vidro ou metálico. Borrifar com jato de perfume um conhecido equivalia a uma saudação amistosa. Alvejar os cabelos ou o colo de uma jovem com um esguicho, acompanhando a cadência bonita do samba, representava forma galante de exprimir simpatia e afetividade. Não ocorria a ninguém, obviamente, o temor de vir a ser acusado de assédio por conta desse inocente procedimento. Ficava-se a aguardar pelo esguicho de volta, um sinal promissor de correspondência. A bisnaga perfumada era considerada, assim, imprescindível dentre os apetrechos carnavalescos. Tanto quanto a fantasia, o confete, a serpentina. Entrava e saia carnaval, e de nenhuma voz autorizada se fazia ouvir qualquer tipo de advertência relativa à insuspeitada toxidade do produto. Não passava pela cabeça de qualquer vivente a “extravagante” ideia de que o lança-perfume pudesse, em algum momento, ser equiparado a drogas da pesada, capazes de provocarem dependência química. A visão que dele se tinha, de modo geral, era de um brinquedo divertido, para adultos e crianças. Nas matinês, a meninada trazia, pendurado na cintura ou preso nas mãos, seu tubo de lança-perfume. Jogar perfume nos outros tinha tudo a ver com o espírito da festa. Só mesmo imperícia no manejo do artefato produzia um que outro inesperado transtorno. Quando, por exemplo, se atingia, inadvertidamente, o olho do freguês, em lugar de outra parte do corpo imune ao ardor incômodo do líquido.

A invenção de moda de embeber o conteúdo dos frascos em lenço, mode que aspirá-lo, demorou um tempão para chegar aos salões. A raridade desse tipo de ocorrência recorda-me um “quebra pau”, prontamente dissolvido pela turma do “deixa disso”, envolvendo personagens conhecidos na vida pública. Contrariando a regra escrupulosamente seguida por todo mundo, eles andaram cheirando, prolongadamente, a ponto de dar vexame, o lenço encharcado de perfume. Acabaram se estranhando no auge da vibração. O episódio ficou de tal forma gravado na lembrança do lugar, que chegou a ser citado como referência de algo indesejável até mesmo, dois ou três anos depois, nos preparativos de outras festividades carnavalescas. Acrescente-se, a bem da verdade, que os belicosos foliões, responsáveis pela infringência das regras, tomaram “chá de sumiço” nos carnavais seguintes, sentindo-se no mínimo constrangidos com relação ao malfeito praticado.

Então, tem ou não tem aqui razão o neto de vó Carlota, quando afirma, carregado de certezas, que os carnavais de antigamente eram bem mais bacanas e prazenteiros?

* O jornalista Cesar Vanucci (cantonius1@yahoo.com.br) é colaborador do Blog Mundo Afora

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.