Precisamos de heróis negros na Espanha?

Por Flávio Carvalho

Momento em que Gorgui faz o salvamento

“Incêndio. Um apartamento pegando fogo”, grita alguém lá de dentro, no primeiro andar. Um senhor doente, impossibilitado de andar e de sair da cama, desesperado.

Cinco pessoas. Quatro espanhóis. Um africano. Quatro brancos. Um negro.

Quem trouxe uma escada para que o “herói” pudesse baixar carregando aquele senhor doente nas costas? Qual dos cinco homens arriscou-se ao fogo, para salvar a vida do doente?

Gorgui Lamine Sow, senegalês, pai de uma filha de sete meses. Três anos aceitando todo tipo de serviços “em negro”, como se diz aqui. Trabalhar “em negro”, no Reino da Espanha, significa aceitar qualquer tipo de serviço, humilhante ou não, de forma precária, sem garantias de que receberás pelo teu trabalho – nas mãos de um espanhol que pode te contratar e logo te denunciar por haver trabalhado “ilegalmente” para ele (irregularmente, pois ninguém pode ser considerado ilegal até que se prove o contrário). Denunciar-te por haver trabalhado para ele sem a permissão espanhola de poder viver e trabalhar na Espanha? Não seria a primeira vez, infelizmente, que aconteceria. Conheço inúmeros casos de brasileiros na mesma situação.

Importante salientar que não escrevo “contra os espanhóis” e sim contra um sistema neocolonial que permite a espanhóis – como poderia ser um europeu de qualquer nacionalidade – utilizar vidas não espanholas dessa forma.

Sempre me lembro do caso de um brasileiro chamado Charly, que – em um acidente de trabalho – ficou soterrado por terríveis minutos em uma obra (na construção civil). E foi logo denunciado pelo próprio espanhol que lhe contratou, na província de Girona. Nem sequer este seu “empregador” acionou uma ambulância pública para salvar a vida do brasileiro. Não o fez por saber que estava atuando de forma fraudulenta, na sua empresa. Momentos importantes para salvar uma vida, ser um “herói” ou seguir sendo um bandido desgraçado, sem coração. Charly (não é um nome fictício) recorreu à justiça e somente ganhou a causa por uma questão “humanitária”: arrastará para sempre a condição especial de estar impedido de trabalhar por haver sofrido um derrame cerebral durante o seu enterramento em vida, na obra. Tudo aconteceu em preciosos segundos, como no caso do incêndio inicialmente relatado.

Este Reino não sobreviveria sem essa economia informal, sem a exploração dos migrantes como o “Herói Senegalês”. Não sou eu quem afirmo. É a própria estatística espanhola, de um país que necessita esse tipo de barbaridade, para levar adiante sua economia interna (e externa). Um país absolutamente envelhecido e sem regeneração na faixa etária onde mais necessita de cidadãos de segunda, terceira ou quarta categoria: migrantes jovens – como o senegalês de vinte anos.

Em mera comparação, no Brasil: pense em todas aquelas pessoas que vivem de bico, de biscaites (assim se diz no meu Recife), de pequenos serviços, na absoluta informalidade e precariedade. Agora imagine que estão ameaçados, pela polícia, de serem deportados, presos e enviados de volta aos seus países de origem… Discriminações, infelizmente, somam-se. No Brasil também. Claro que sim. Mas aqui você poderia “acrescentar-se” uma mais. Mulher? Negra? Pobre? E imigrante!

Voltemos ao “Herói Senegalês”.

Ironicamente, imagino hoje os migrantes pensando em vir aqui, para o Reino, com a mera disponibilidade de tornar-se herói. Coisa que imagino que não se ensaia, não se treina, não se prevê. Pelo menos nesses casos, como o que relatei – acontecido na cidade espanhola chamada Dénia.

“Nem pensei duas vezes. O homem estava em perigo. Subi e o ajudei. Fiz com o coração”, afirma o Herói de Dénia, segundo todos os jornais espanhóis – em pé de página.

Minutos depois de salvar o espanhol, o senegalês voltou ao seu trabalho de vendedor ambulante, pelas ruas, como se nada houvesse acontecido. O Prefeito da cidade passou dois dias lhe procurando. Gorgui estava com medo de apresentar-se à máxima autoridade local.

Do espanhol doente que foi salvo (se chama Álex), Gorgui ganhou uma camisa com aquele símbolo do Super-Homem. É com essa camisa que o senegalês aparece em vários telejornais espanhóis e europeus.

Aconteceu algo semelhante na França e o Presidente Macron não somente concedeu o documento de permissão de residência e trabalho a um africano, como ainda o contratou para o corpo de bombeiros francês – também diante das câmeras de televisão.

E agora, a hipocrisia espanhola.

O Ministro da Justiça do Reino, Fernando Grande-Marlaska, respondeu à petição da Prefeitura de Dénia: pedido para conceder documentos de residência e trabalho ao Herói. O Ministro lembrou que a Lei de Estrangeiros permite a “excepcionalidade, em casos concretos”. Em resumo: se a filha do herói estiver morrendo, de fome ou de guerra, no Senegal, não há excepcionalidade para que ele seja aceito como um cidadão de plenos direitos, no Reino da Espanha. Se for pra arriscar a própria vida, do pai de família, salvando um espanhol das chamas, sim – pode ser.

A mais importante ONG catalã de luta antirracista realizou, recentemente, uma seleção pública para contratar um novo coordenador de projetos sociais. Havia que responder-se uma pergunta inicialmente, todos os candidatos: “que modificaria na Lei de Extranjería?”.

Foram reprovados todos os candidatos que apresentaram propostas de melhorar tal lei.

Concordo plenamente com a ONG, SOS Racismo, tal como o fez. Não há nada a modificar nessa lei. Deveria, sim ser integralmente abolida. Essa lei que mais discrimina do que efetivamente se dispöe a aceitar que haja cidadãos de primeira, segunda, terceira, quarta categoria…

Não precisamos de heróis. Precisamos de cidadãos plenos de direito. E de coração. Como Gorgui Lamine Sow, senegalês, pai de uma filha de sete meses. Se chama Ndeye. E acabei de informar-me que Gorgui sonhou que seria pai quando viajava, antes de chegar à Espanha, pelo Brasil, pela América Latina, dormindo nas ruas, como vendedor ambulante.

*Flávio Carvalho é sociólogo e escritor
@1flaviocarvalho @quixotemacunaima

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