Cantinho Brasileiro resiste à era Covid e espera poder celebrar 24 anos em Barcelona
Restaurante comandado pela brasileira Ângela de Assis no centro da capital catalã resiste à crise gerada pela pandemia e espera poder celebrar festa de 24 anos
Quem transita pela Calle Ample, no coração do bairro Gótico de Barcelona, onde enche os olhos com a variedade de bares e restaurantes, tem dificuldade para escolher onde entrar para tomar um drink, petiscar ou fazer uma refeição. Entre estabelecimentos turcos, italianos, gregos, mexicanos, japoneses e chineses, só para citar alguns, um resiste bravamente. É o Cantinho Brasilero, pilotado há 24 anos pela pernambucana Ângela de Assis, com uma clientela cativa que foi essencial para a sobreviver à crise gerada pela pandemia da Covid-19, que devastou negócios não só na Espanha, mas em todo o mundo.
Faz pouco tempo que Ângela reabriu as portas, após um longo período de restrições que levaram muitos estabelecimentos do ramo longevos na cidade como o Cantinho a encerrarem suas atividades. Em março de 2020, com o coronavírus em plena expansão no mundo, o governo espanhol decidiu por um confinamento radical que durou três meses. Só podiam abrir serviços essenciais, como supermercados e farmácias, e para sair de casa era necessário justificaticar-se diante da polícia.
Foi a sentença de morte para muitos bares e restaurantes, que ainda tinham que continuar pagando aluguel, contas de água, energia e gás, e os salários dos empregados. Depois desta fase, foram muitas etapas de restrições diversas, com horários partidos durante o dia, liberação para comercialização apenas em domicílio, novos fechamentos, reaberturas, limitação do número de clientes.
Tanto Ângela como milhares de proprietários de restaurantes na Espanha foram obrigados a colocar os empregados em ERTE. O expediente criado pelo governo central permitiu às empresas fazerem a suspenção dos contratos dos funcionários por tempo indeterminado, cujos salários foram assumidos pela segurança social. Para Aêngela, o jeito foi trabalhar sozinha quando enfim foi permitido funcionar. Cozinhando, preparando e gestionando entregas em domicílio, além da limpeza.
Quando houve uma das primeiras flexibilizações por parte do governo, Ângela se viu obrigada a fechar o restaurante porque contraiu a Covid-19. Seguiu os procedimentos sanitários e se isolou por 15 dias em casa. Foi uma das etapas mais duras. Nesta fase foi essencial o carinho e a atenção recebida por parte de amigos e clientes. Muitos deles passavam cada dia em frente do apartamento de Ângela, paravam diante da sacada, tocavam no interfone e perguntavam se estava precisando de alguma coisa. Além disso, traziam comida, remédios e o que mais necessitasse, além de muito afeto.
No último dia 23 de setembro, véspera da maior festa de Barcelona, em homenagem à Nossa Senhora das Mercedes (Mercè en catalão), encontramos Ângela trabalhando já com a flexibilização de algumas das medidas sanitárias. Agora, bares e restaurantes estão autorizados a ficarem abertos até as 1h30 da madrugada. Antes disso, a escala de fechamento foi mudando gradativamente: fechar às 21h, depois às 22h, às 23h, à meia-noite, 0h30.
O Cantinho Brasileiro está aberto das 11h30 às 1h30, de terça à domingo. Vale ressaltar que antes da pandemia, o bar encerrava o expediente entre 2h e 3h. Além do horário de fechamento, 1h30, que para a noite barcelonina é considerado cedíssimo, muitas são as regras a cumprir. “Agora tenho que trabalhar de censora e estar atenta à distância entre os clientes porque posso ser multada a qualquer momento se chega um fiscal“, explica.
Ela conseguiu reativar o contrato dos dois cozinheiros, mas foi obrigada a encerrar o da pessoa que revezava com ela na barra do bar e permitia que pudesse fazer rodízio de horário. Agora, na entrada no estabelecimento, que lembra os típicos botecos de São Paulo, ela retirou os bancos que permitiam aos clientes serem servidos na barra. “Fui obrigada pela fiscalização durante o período mais crítico da pandemia e agora decidi ficar sem eles, para liberar espaço para passagem das pessoas”.
No salão onde serve almoço e jantar – com opções de pratos típicos de diferentes regiões do Brasil – mantém quatro mesas com número de aforo limitado. Neste espaço, que remete à Pernambuco com uma imensa foto do Galo da Madrugada do Recife, sua cidade natal, e retratos de maracatus e caboclinhos registrados pelo fotógrafo conterrâneo Miguel Igreja, já não pode mais realizar as festas de aniversários que os clientes contratavam.
Tampouco pode deixar que as pessoas se aglomerem, como era comum antes da pandemia. Numa noite pré-Mercè, por exemplo, era difícil cruzar o corredor entre a barra até o salão de refeições. Os clientes, ao som da música brasileira exibida em telões, costumavam a aglomerar e festejar. Na data em que estivemos conversando com Ângela, nada de aglomeração, com todos respeitando as medidas de higiene e a distância de segurança recomendadas pelas autoridades.
Com todas as restrições, o que se verifica atualmente é uma mudança de hábito dos clientes. Que segundo Ângela, estão mais vorazes nos pedidos. “Tenho menos clientes, mas que consomem mais. Não se restringem, nem para beber, nem para comer. Todos estão como se o mundo fosse acabar amanhã“, diz. Entre os que migraram para pedidos em domicílio, Ângela também afirma que o consumo aumentou. “É impressionante como fazem tantos pedidos em uma único encomenda”.
A ponto de completar 30 anos na cidade, com uma história de vida cheia de perçalços – prisão por falta de documentação no primeiros meses na cidade, ganhar a loteria e pagar a fiança, entre outras pra contar desde que migrou para Barcelona em 1992, ano das Olimpíadas –, o que Ângela mais anseia hoje é saber se vai conseguir celebrar a festa de aniversário de 24 anos do Cantinho, neste novembro de 2021. Está à espera das novas determinações das autoridades sanitárias, que a cada 15 dias revisam o protocolo, a ver se será possível.
Também aguarda saber se algum dia poderá deixar que as pessoas se aproximem de novo dentro do estabelecimento de forma segura. De momento, os clientes mais antigos, com os quais também divide a amizade, estão de volta, e novos entram a cada dia. É tempo de refazer a vida.