A Raposa e o Lula: 40 anos do PT e a Democracia em vertigem, em Barcelona
Por Flávio Carvalho
“En materia política, solamente dos cosas me hacen pensar que no hay lecciones de moral a dar entre estos dos países, pues España, con toda la crisis, es el segundo país (después de Estados Unidos) que más dinero privado sigue ganando en Brasil. Esto poca gente aún lo sabe”, Flávio Carvalho, Revista Orto, 2016.
Éramos, em 2012, um pequeno grupo de brasileiros e catalães independentistas no majestoso Palácio sede do Governo da Catalunha. Tínhamos uma missão impossível: conseguir de Lula um depoimento simpático ao catalanismo diverso que lhe premiava naquela mesma noite com o mais importante prêmio diplomático, o Prêmio Internacional Catalunha. Entre nós, vários saíram eufóricos com aquele contato direto com o Lula. Eu não.
Preferi apostar, com êxito, por sua assinatura em uma carta ao bispo catalão Pedro Casaldáliga, ameaçado de morte no Brasil e que havia acabado de declarar, numa entrevista ao jornal catalão ARA, com todas essas letras: “Lula é um Neoliberal”. Sua assessoria havia acabado de lhe mostrar a manchete do jornal e Lula, sorrindo, disse precisar mais de Pedro do que Pedro precisava dele. Tempos depois, o compreendi.
Aqui em Barcelona, assistindo (no espaço cultural La Contra) o documentário Democracia em Vertigem, em plena noite do Oscar, algumas frases me impactaram muitíssimo. Em uma delas, Dilma responde em que momento Lula lhe pediu pra que ela fosse a sua sucessora na Presidência da República. “Ele não me pediu”, diz a Dilma. E completa deixando-nos a entender que Lula fala sem falar.
Há poucos dias, o maior partido político da América Latina, o PT, completou 40 anos de existência. Filiei-me ao PT em 1990, trinta anos atrás. Quando me perguntam quando “deixei de ser petista”, respondo que não sei. Sei que me afastei. Por uma crise existencial; minha, não do PT. Casei-me com o partido no papel, separamo-nos, mas nunca assinamos, de fato, o divórcio. Algo como nunca deixar de ser petista. Até porque quanto mais crítica, sempre construtiva, quanto mais “de fora” me sinto… é como ser brasileiro: quanto mais longe, mais dentro (de mim). Sou dos que pensam que o PT cresce mais quando o criticam do que quando o bajulam. O Partido da dimensão de um ser humano como Paulo Freire – o homem chamado coerência – nunca poderia ser diferente.
E não é por pouco orgulho que escrevo sobre haver feito parte da história desse Partido. Que foi escolhido pelo neofascismo brasileiro como a culpa de todos os SEUS problemas. Cada vez que escuto, se não fosse por outras circunstâncias (que não cabem nesse breve texto), dá até mais vontade de ser PT. Estando vivo o (meu!) sonho, pouco importa se estou fora ou dentro.
E foi assim que pelo que conheço o Lula (e quem não o conhece, depois de todos esses anos?), sei que ele não se posicionará, por exemplo, em relação a um conflito político que eu vivo de perto: a relação Catalunha – Espanha. Lamentável. A autodeterminação dos povos sempre foi uma das mais bonitas resoluções aprovadas em sucessivos congressos petistas. Palestina, Povos Indígenas, populações oprimidas… Diferentíssimos contextos pra uma mesma filosofia: ser dono das próprias vontades, construindo o seu próprio futuro.
Guardei desse novo Lula uma boa impressão: um homem agora mais que nunca do querer saber, do querer conhecer, do querer compreender. Em resumo, um homem “gostar de ler”.
Na casa do dentista Enildo, Presidente do PT de Olinda, nos anos 90, Lula disse-nos que admirava muito Miguel Arraes, fundador do seu aliado Partido Socialista Brasileiro. Exemplificou, de forma objetiva. Quando os partidos de direita privatizaram os bancos públicos estaduais, Arraes conseguiu o voto de todos os movimentos sociais que foram contra as privatizações. Ninguém nunca poderá dizer que Arraes falou em alto e bom som que reverteria o quadro de privatizações. Quem ouviu isso da sua boca? Mas ele soube “jogar” com essa esperança. E de fato, nunca o fez. As pessoas, carregadas de esperança, encarregavam-se de fazer a campanha para Arraes (que Lula chamava de Velha Raposa), dizendo que votar em Arraes era a única possibilidade de reverter o desastre das privatizações. Calado, Arraes nunca desfez o mal que a direita nos havia feito. E isso nos explicava sempre sorridente – como quem nos conta uma boa piada – o Lula.
Em Barcelona, Ricardo Stuckert, fotógrafo oficial do Lula também nos explicava o porquê de Lula ser capaz de demorar horas fazendo fotos com todo aquele mar de pessoas que lhe pediam. Stuckinha, como Lula o chama, disse-nos que Lula sabe o significado de cada foto na parede de cada casa pobre do interior do Brasil. Liturgia? Astúcia política? Saber “jogar”, como nenhum outro político, com um dos maiores patrimônios brasileiros: a esperança.
Ricardo Stucker fotografou-me com Lula, pediu meu e-mail e enviou-me, quando eu menos esperava, a tal fotografia. Havia me explicado que não se tratava de um privilégio meu. Dezenas de fotos eram enviadas por e-mail ou por carta autografada, cada dia.
Perto do final do documentário Democracia em Vertigem, uma limpadora, faxineira do Palácio da Presidência da República do Brasil, sentencia (essa sim, a frase que mais me impactou), do alto do que ela pode pensar que é somente um modesto depoimento de alguém que não entende nada de política, mas que para mim é de uma grandeza social extraordinária: no Brasil não há democracia. Nunca houve, diz ela.
Do meu lado, uma brasileira que viveu anos trabalhando como faxineira em Barcelona, enxugou as lágrimas. Ela me disse que se viu na tela de cinema do La Contra. E que, para ela, o documentário Democracia em Vertigem, já era vencedor.
“A esperança dança na corda-bamba de sombrinha”. Viva o Brasil!
PS.: Busco portador pra levar um livro de presente para um brasileiro. O livro chama-se “Catalunha, entre a esperança e a tempestade”. O destinatário, Luiz Inácio. Tenho suficientes razões para acreditar que lhe agradará.
*Flávio Carvalho é sociólogo (@1flaviocarvalho / @quixotemacunaima)