O “Sai da frente” nas eleições municipais e o apoio no exterior. Por que não?

* Por Flávio Carvalho

O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não veem” (Clarice Lispector).

A Grande novidade existente na relação entre as comunidades de brasileiros que moram fora do país e a comunicação mantida com familiares e amigos é o advento de sermos – eu moro em Barcelona desde 2005 – solicitados para apoiar determinadas candidaturas às próximas eleições municipais. Certamente pela transcendência que há no panorama internacional de que estas eleições podem significar um imenso plebiscito contrário à péssima gestão da pandemia por parte do atual governo fascista do Brasil.

No meu caso, como se algum dia eu tive qualquer amizade supostamente fascista (felizmente já não tenho mais nenhuma), tenho recebido diversos pedidos de apoio a candidaturas sempre de esquerda – para vereadores ou prefeitos.

Fico sinceramente feliz com estes vínculos mantidos. Assim como me alegrei com a carta recentemente publicada pelo querido Frei Beto, dirigida à comunidade internacional e aos brasileiros no exterior. Beto pede e farei tudo o que puder para ajudá-lo a denunciar, ao Mundo todo, Bolsonazi como um fascista que ameaça a humanidade e não somente o Brasil.

Apresento, porém, duas importantes preocupações. A primeira é menor, mas levaria mais tempo a ser abordada. O “complexo de cachorro Vira-lata”.  Esse complexo de inferioridade atribui maior importância ao que teria a dizer (bobagem ou não) um brasileiro em Barcelona do que um brasileiro que realmente teria algo importante a dizer à imprensa, mas que mora em Olinda – por exemplo – e não na Europa.

Como não sou besta, agradeço a essa prerrogativa, como um alto-falante. E sigo escrevendo as coisas que penso, utilizando-me de outro profundo foco de contradições: a Internet, com todos os seus defeitos e possibilidades. Quem escreve quer ser lido. Eis aqui. Pra mim é diálogo. Comentas-me? Compartilhas?

A segunda questão precisa ser mais bem explicada. Até mesmo para não parecer presunçoso. A Europa está cada dia pior. Mas a resposta de uma parte significativa dos movimentos sociais que sigo participando aqui na Catalunha, embora em minoria, é: avancemos! Não temos tempo a perder com certos retrocessos. “É você que ama o passado e que não vê…”.

Quando aqui falamos em direitos humanos, fazemos questão de sair do etéreo, do abstrato, mesmo reconhecendo ser uma fundamental reivindicação que mudou a história das principais lutas mundiais. Mas que a meu ver, poderá completar cem anos como o exemplo do Prêmio Nobel da Paz, premiando até quem não merece, porque nos desrespeita. “A gente não quer só comida”. O mundo de hoje nos exige mais. Para o bem ou para o mal, recebemos esse alerta.

Não queremos esperar cem anos. Não aceitamos mais isso. Já sei que nos acusarão de apressados. Olhem ao seu redor. E reflitam. No Brasil, como fizemos por aqui. Por isso, não percamos mais tempo. E deixemos algumas coisas bem claras, para não trazer constrangimentos.

Para começar, devo dizer que seguiremos respeitando profundamente, apoiando inclusive, velhos companheiros de luta, por sua trajetória e conquistas. Entretanto, não é uma opção meramente cosmética que QUERO apoiar a candidatura de uma soma de significados que dizem muito para mim e certamente para o nosso país. Aliás, principalmente, para o nosso Brasil.

Por ser maioria quantitativa da população e por já havermos passado pelo debate meramente quantitativo e passamos à qualidade destas representações, onde estão as mulheres candidatas a prefeitas e vereadoras?

Por ser maioria também não somente quantitativa, ocupa centralidade – tanto quanto a questão feminista – o que também era “transversal” e já não é mais: a questão racial. Quem ainda hoje duvida da importância da escravidão estar presente no DNA constitutivo das principais desigualdades sociais brasileiras? Admitir privilégios é o primeiro passo para abrir mão deles. São questões internalizadas. Botemos tudo pra fora. Chegou a hora.

A candidata melhor, para mim, nem tem sexo. Rompeu o tradicional esquema CIS. Ainda não leram sobre isso?

E se for indígena, apesar de minoria quantitativa, multiplica para mim a importância de todas as ancestralidades brasileiras. Aliás, mais brasileira impossível.

Em resumo, a candidata perfeita é, para mim, preta, trans, indígena e outras “transversalidades” mais. Não desprestigio quem não é. Valorizo o que realmente me importa.

Discriminação positiva? “Você não está entendendo quase nada do que eu digo. Eu quero ir embora. Eu quero dar o fora. E quero que você venha comigo”.

“Mas, Flávio… Abandonou o velho Marx?”.

Muito ao contrário, companheiro.

Depois de anos de debate marxista, e na atual conjuntura fomos forçados (forçados!) a ampliar, somar, multiplicar perspectivas. Eu quero o impossível. Utopia marxista, lembra?

Pensamos haver avançado tanto, pessoas que pensam coletivamente, em meio a tantos retrocessos sociais, que estamos em um nível de apoiarmo-nos, individualmente, a todos aqueles companheiros, homens, CIS, brancos, que enfrentarão de cabeça erguida e alma lavada à grande novidade da crise de valores que está jogando nas nossas caras: gratidão, por tudo já feito, mas os tempos são outros e a hora é de dar um passo ao lado e sair da frente, companheiros. Se você acredita firmemente, como eu, que o que queremos é transformar essa realidade pra melhor, devemos estar absolutamente preparados para uma nova aposta, resumida em uma única e coerente expressão:

E porque não?

E, por último, mas não menos importante. Nos movimentos políticos europeus onde participo, falar de política é começar falando de privilégios dos próprios políticos. Para ser coerente, responda-me primeiro essa pergunta: você é dos que acham que depois de sofrer tanto, merece esse salário de vereador ou prefeito ou acha que abrir mão desse salário altíssimo – e de tudo o que vem a ele associado – é o melhor gesto pra começar a abolir mais esses privilégios? O sistema político atual está feito para reproduzir parasitas. Entramos nele e implodimos suas bases? Sei que isso te dói e empatizo com a tua dor. Mas é tempo de avançar.

Porque se você acha que essa é uma mera questão de “purismo e ingenuidade ideológica” como um dia eu já pensei – mas fiz questão de mudar – avance algumas casinhas e a gente se vê lá na frente do tabuleiro, pois esse jogo somente acabou de começar. Vem partida boa aí…

Com todo o respeito do mundo. Aquele abraço.

Flávio Carvalho é sóciólogo e escritor. Barcelona, verão de 2020 – como se fosse em Itacaré.

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