1º de outubro, dia marcado na minha história para chorar (de emoção)
*Por Flávio Carvalho
“Pero, en todo caso, estoy seguro que, tras todo esto, se trata sobretodo de emociones… Es como intentar convencer a un musulmán que Dios no existe. Es casi un choque de civilizaciones”.
John Carlin, ex jornalista do El País. Espanha, um país à beira de um ataque de nervos.
Operació Urnes, de Laia Vicens e Xavi Tedó, foi o meu melhor presente de natal. Um livro como fazia anos que eu não lia, de uma só vez.
Esse livro ajudou-me a reafirmar uma sensação: para mim, tudo que estamos vivendo politicamente na Catalunha é questão de sentimentos. Isso passou a ser o principal.
Confiança
Repete-se, neste livro, uma frase, entre os protagonistas. Uma pessoa pergunta, clandestinamente, se a outra está disposta a colaborar com algo importante e arriscado, em relação ao Referendo convocado pelo Governo da Catalunha e ameaçado pelo Governo da Espanha. A resposta é sim, de imediato, sem margem para hesitações. Produz-se um encadeamento de gestos de confiança, em redes de sociabilidades nunca antes imaginada. Em consequência, muito mudou, em tão pouco tempo, considerando a longa e arrastada história desse país.
Assisti com meus próprios olhos, no dia do Referendo, mudanças de comportamento muito significativas em relação ao pequenino município catalão onde eu vivo, um microcosmos catalão. De fato, o menor em território de toda a Catalunha. Puigdàlber, assim se chama. Eu mesmo passei a ver vizinhos com outros olhos, em todos os sentidos. Para o bem e para o mal. Algo que “brotou” naturalmente. Lamentável? Não. Prefiro aceitá-los, esses novos sentimentos, do que fingir que inexistem. Até porque as novas confianças superam com ampla maioria as novas desconfianças.
Desconfiança
Colegas, em Barcelona, pessoas comuns com as quais eu então falava sobre política, compartindo um mesmo referente quando pensávamos que falávamos o mesmo idioma: democracia. Em um conflito (se somente o consideras como algo negativo, já não falamos o mesmo idioma), a melhor coisa a fazer é nomear os sentimentos. A partir daí, prevalece o respeito, por mais que ambos apontamos coisas tão distintas quando nos referimos a tal mesma palavra: democracia.
Ando, no mínimo, com dois laços amarelos, todos os dias. Um na mochila e um no casaco, que normalmente eu ponho na rua, pelo frio. Um símbolo de exigência de liberdade para os presos políticos independentistas. Senti, não poucas vezes, o incômodo em alguns olhares. Espantam-me. Não esses olhares e sim o que podem representar: o não querer me deixar sentir. Ou pior: o não deixar-me expressar o que eu sinto.
Por cinco vezes, desde novembro passado, um grupo de pessoas da minha cidade sai, à luz do dia, em festa, colando cartazes, bandeiras, faixas e laços amarelos em todas as pontes, árvores, postes… Sempre com a mesma cor: o amarelo que para eles representa a liberdade. Por quatro vezes, sempre à noite, anonimamente (eis aqui uma diferença fundamental), amanhece tudo destroçado, arrancado, pelo chão.
Esses falam em “delitos de ódio”, “fratura social” ou até mesmo que uma pessoa como eu faria parte de um grupo de ingênuos, abduzidos, hipnotizados por um dominante fanatismo nacionalista. Dei-me ao trabalho de analisar minhas próprias interioridades, para saber se teriam, esses, um mínimo de razão. A mais sensata conclusão a que cheguei foi que eles nunca fariam o mesmo por mim. E isso muito nos diferencia. Agora muito mais que antes.
Coragem? Individual ou coletiva? Covardia? Na calada da noite ou à luz do dia?
Quando alguém pretende impor o “como deverias sentir-te”
Coleciono frases e artigos de jornais espanhóis com afirmações como essa. “Los catalanes no deberían sentirse…”. Esse foi o mais perigoso terreno em que entramos: quando uma pessoa, um político, um colega, primeiro sugere, depois induz, logo insiste e termina impondo a sua particular visão de como eu – ou qualquer catalão – deveria sentir-se.
Evidentemente, o próximo passo seria o uso da força. “Como não vês o que estou te mostrando?!”. Num debate aberto, o maior desqualificativo será dizer que o outro não está entendendo; quando o que está fazendo é simplesmente não concordar (porque entender o entende perfeitamente).
Como bom brasileiro eu ainda me surpreendo ao comparar que o processo de autodeterminação da Catalunha, se fosse no Brasil, haveria provocado mortos mil. Como felizmente não há sido, atrevo-me a pensar que todo o desgaste provocado (negar o conflito até que o mesmo transcende e supera todas as expectativas de quem tanto o negou), por não haver válvulas de violência explícita, como mortes nas ruas, está travestido do que o filósofo Michel Foucault chamou de violências simbólicas.
O poder está em todas as partes. Somente temos que fazê-lo visível ou invisível
A Operação Urnas, na Catalunha, foi um êxito, por paradoxal. Cidadãos comuns, que nunca imaginaram abraçar-se por uma mesma causa (já que ERA tão diferente e incompatível a luta pela mudança social e a autodeterminação), juntos operando na clandestinidade, para esconder urnas como se fossem uma arma delinquente! Como se fossem terroristas! A necessidade clandestina de esconder um símbolo da expressão máxima da democracia (o voto numa urna; que não é tudo, mas é MUITO) conferiu, pela violenta repressão policial patrocinada pela monarquia espanhola, a maior visibilidade internacional que a Catalunha nunca teve e sempre mereceu. No hay mal que para el bien no venga.
Esperança
Minha maior esperança é que uma pessoa possa não dizer o que realmente sente, assistindo um vídeo como o que pode ver-se clicando aqui. Pode até guardar para si mesmo, se no fundo ainda não estiver convencido de que não sou um criminoso que mereço ser preso por cometer uma ilegalidade inconstitucional (o que tenho sobradas razões para acreditar que isso não seja assim). Pode achar que fui enganado por fanáticos nacionalistas. Pode! Pode achar que me equivoco. Pode!
Mas, por favor, nunca despreze nenhuma lágrima de uma pessoa que diz o que sente, quando ela diz e quando ela sente, revestida de coragem pra expressar seu sentimento. Por favor.
Esse texto, na verdade, foi inspirado numa revelação bem cotidiana.
Um dia desses, o meu filho dizia que o remédio que lhe dei ardia no contato com a ferida na sua pele. Com a melhor das intenções, tentando dar-lhe forças, argumentei que não podia ser, pois o estava curando e, afinal, “não ardia tanto”. Sua mãe me lembrou de nunca (nunca!) dizer a ele que ele não sentia o que ele estava sentindo.
“Quando a polícia entrou na associação de idosos da pequena cidade aos pés dos Montes Pirineus, em busca das urnas, já bem escondidas, os organizadores do Referendo simularam estar jogando dominó. A foto dos policiais observando o jogo de dominó deu a volta ao mundo. Tratava-se de ganhar tempo, para que as cidades vizinhas pudessem preparar-se e esconder suas urnas. Outro gesto de coragem extrema. Algumas urnas foram escondidas no santuário principal da igreja, a pedido do próprio padre, outras dentro de catacumbas do pequeno cemitério municipal. Enquanto isso, uma menina saiu correndo pela porta de trás da Prefeitura. Tentou correr. O medo a paralisou… Algumas urnas atravessaram a fronteira da França com a Espanha escondidas na mala de um carro velho, onde o transportador clandestino fez questão de levar os próprios filhos para passear e ajudar a disfarçar ainda mais a preciosa carga… Um doador anônimo havia decidido sozinho pagar todos os mais de cem mil euros pela compra das urnas chinesas que desembarcaram clandestinamente pelo Porto de Marselha. Um sindicalista independentista de extrema esquerda admitiu que sem o apoio de um burguês como o mencionado, aquela “revolução” não se haveria produzido… Uma mãe da associação de pais de alunos aterrorizou-se ao ver que o comandante da Guardia Civil espanhola dirigiu-se exatamente para a sala onde estavam chorando, desesperadas, as crianças mantidas longe dos golpes de cassetete da polícia. Estavam sob a guarda de monitores voluntários e até hoje se perguntam qual imagem terão aquelas carinhas assustadas diante daquele raivoso policial…”.
Mãe, a polícia está para nos proteger?
No vídeo 1 de Octubre, depois do Presidente da Espanha afirmando que não haveria e não houve Referendo, a frase que mais me impactou foi essa:
“Quando vimos os policiais saltando o muro da escola, nosso local de votação, nos demos conta de que não se tratava de uma fortaleza intransponível. Claro: era somente uma escola”.
Visca Catalunya. Viva a Catalunha.
Puigdàlber, janeiro de 2018.
*Flávio Carvalho, sociólogo brasileiro, residente na Catalunha desde 2005.