Escravidão em era de “esplendor tecnológico”

*Por Cesar Vanucci

Dizei-me vós (…), se é loucura…
se é verdade, tanto horror perante os céus?!”
(Castro Alves, ainda atual)

Por mais espantoso que possa parecer, a maldição do trabalho escravo ainda é detectada em numerosas paragens deste paradoxal planeta azul. Difícil pacas engolir algo tão tenebroso assim nestes tempos que tanta gente considera áureos em razão de uma extraordinária evolução tecnológica. Nos sonhos das conquistas civilizatórias, o desenvolvimento técnico a que chegamos estaria potencialmente apto a implantar, com razoável rapidez, em todas as latitudes terrenas, para a humanidade inteira, o reinado do bem-estar social.

Conclamando a comunidade das nações a combater a nefasta prática, a ONU reconhece, em estudo recente, que o “trabalho forçado” afeta, nada mais, nada menos, que 40 milhões de seres humanos, valha-nos Deus, Nossa Senhora!

A estarrecedora revelação veio a furo pouco depois da chocante apresentação, nas redes de televisão, de um documentário contendo inverossímeis cenas das operações “livres e desembaraçadas” de um mercado de escravos em funcionamento na Líbia oferecendo como “mercadoria” indefesos imigrantes africanos. Não se trata, pra vergonha da espécie humana, de caso isolado, assegura o estudo, com o acréscimo da desnorteante informação de que um quarto da mão de obra submetida a esse ultrajante regime de servidão é composta de crianças.

Pelos conceitos de “escravização moderna”, adotados por especialistas, tem-se por certo que 25 milhões de pessoas são vítimas inocentes, nos diferentes continentes, do chamado “trabalho forçado”. Já outras 15 milhões de “casamento forçado”. O modelo de “casamento” enfocado advém de injunções terrivelmente machistas. Reveste-se, às vezes, de falso cunho religioso. Impõe exigências despóticas, na base da absoluta submissão, às mulheres enredadas no degradante processo. Mas mesmo esses números – pasmo dos pasmos! – podem ainda não traduzir a perversa realidade em toda sua dimensão. São subestimados, admitem unanimemente os responsáveis pelo levantamento, a Organização Mundial do Trabalho (OIT), o “Walk Free Fundation”, instituição de defesa dos direitos humanos internacionalmente acatada e a Organização Internacional das Migrações (OIM).

Noutras palavras, o problema não é apenas tão arrasador quanto se possa imaginar a princípio, mas bem mais arrasador do que se consiga jamais imaginar. As modalidades do “trabalho escravo” comportam infinitas crueldades. Mais da metade do contingente humano explorado enquadra-se no asqueroso “sistema da servidão por dívidas”. As ligações de abjeto servilismo aos algozes podem resultar de dependência química, o que implica para os viciados permanentes abusos físicos e psicológicos. Significativa parcela dos “escravos”, com predominância feminina no caso, é forçada a se prostituir. Em campos de refugiados, na culta Europa, grupos mafiosos costumam recrutar “mão de obra”.

A ONU constata ainda que somam mais de 4 milhões os seres humanos sob a tutela de “trabalho obrigatório” instituído pelos próprios governos de certos países onde os direitos humanos são clamorosamente espezinhados. E, no fecho destas considerações, um último indicador estatístico, pinçado entre outras dezenas de chocantes informações: mulheres e meninas representam 71 por cento dos casos avaliados, quase 29 milhões de pessoas.

A brutalidade das revelações faz surgir, em mentes bem formadas, comprometidas com os valores humanísticos e espirituais que conferem dignidade à aventura da vida, clamor semelhante ao que levou o genial Castro Alves a arremeter-se, em seu tempo, contra a ignominia da escravidão legalmente aceita no Brasil império. O brado de revolta por ele emitido conserva, ainda, desafortunadamente, inadmissível frescor de atualidade: “Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura… se é verdade, tanto horror perante os céus?!”

* O jornalista Cesar Vanucci (cantonius1@yahoo.com.br) é colaborador do Blog Afora.
Artigo de 17/05/2018

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