Escravidão sexual contemporânea e dramas das brasileiras presas no exterior

Flavio Carvalho
Flávio Carvalho é sociólogo e escritor

Por Flávio Carvalho

Porém lá não estavas nua e sim coberta de nuvens” (Terra, de Caetano Veloso).

“Seu Flávio, o senhor pode me dar um abraço, por favor?”. Assim fui recebido, anos atrás, numa minúscula sala do Presídio de Mulheres de Wad-Ras, em Barcelona. Numa visita voluntária que realizei como representante associativo as 22 mulheres brasileiras que esperavam o dia de visita como um dia de festa. E de tristeza, ao mesmo tempo.

Nunca me esquecerei da brincadeira do funcionário da prisão, já na entrada: “agora, sendo vinte e duas, já dá pra montar dois times”. Era época de Copa do Mundo. Não achei muita graça na piada e fiz questão de demonstrar pra ele.

Ajudava a organizar as visitas, com agradecimento da diretoria da prisão, uma brasileira considerada mais “prestativa”. A que escrevia as cartas e que escrevia recursos administrativos, fazendo o trabalho dos Advogados “de Ofício” (da defensoria pública). Os advogados que sempre reclamavam de recortes na subvenção pública, utilizando como desculpa para deixá-las legalmente desamparadas. Chegamos a escrever dezenas, juntos, em um único dia.

O drama dessa menina, “a do abraço”, não era nada de mais, se comparado com a de uma jovem mãe que não parava de chorar pela doença grave de um dos seus filhos. Sua amiga e colega “de quarto” (de cela), a que mais a ajudava, dizia que oferecia dobrar os anos da sua condenação e cumprir também os dela, se possível fosse. Ambas (e a imensa maioria) presas por tráfico de drogas – que o código penal espanhol denomina, eufemisticamente, de atentado à saúde pública e dá seis anos de prisão, seguido de expulsão da Espanha.

Cada uma com uma história de pontos em comum (prostituição, engano, pobreza e machismo), mas com um universo de dramas pessoais e psicossociais em nada comparável uns com os outros. Em uma prisão, cada sentimento é um mundo. Eu sempre pensava na carga emocional na hora de sair dali, com aquele peso imenso das portas de ferro fechando por detrás. Assustador. De tirar o sono. E olha que as prisões, por aqui, fazem de tudo para não parecer prisão. Mas tem coisas que não tem jeito.

Anos depois, voltei a Wad-Ras. Já era pelo meu trabalho. E me lembro que a administração dos presídios nos tratava melhor como voluntários. E as “internas” também. “Desconfiam dos seus governos e muitas não querem que as famílias saibam de suas histórias”, avisou-me uma assistente social. “Não querem nem que avisemos aos seus consulados”, como um direito ao serem presas. Depois de um mês se arrependem e requerem diversos tipos de ajuda. Inevitável.

Certo dia, por exemplo, entrei com filho e mãe, no presídio de Lledoners, para ver um pai, agricultor no interior de Goiás, que investiu numa mentira (sem êxito): deveríamos mentir ao seu filho, que aquilo era uma fábrica onde o seu pai trabalhava vinte e quatro horas por dia. Não deu certo e a psicóloga do presídio o convenceu a explicar toda a verdade ao seu filho. E melhor se saísse da sua própria boca. Não sei se foi um dia tão terrível para mim quanto foi pra eles.

Mas a pior situação vem desse outro eufemismo que as autoridades espanholas chamam de Trata. Outra tentativa de nome bonito para uma crueldade. Uma modalidade de escravidão sexual internacional em pleno século XXI. No ano 2015 escrevi sobre a brasileira que sempre queimava a retina quando saía ao mínimo sol, depois de anos trabalhando no porão escuro de um prostíbulo (forçado!) em Castelldefels – cidade famosa por abrigar a residência dos astros do futebol aqui na Catalunha.

E cidade onde havia dois míticos “Clubes de Alterne” (outro bonito nome, né?) e vários outros, clandestinos, que abrigavam dezenas de escravizadas. “Estão porque querem; porque gostam” – era o que mais se escutava da boca dos homens que as “usavam” (e abusavam). Como se comprar hora de sexo lhes desse ainda o direito a comprar o falar por elas.

Nesses clubes, a maioria era de brasileiras. Entrevistei algumas para uma pesquisa da universidade, ajudado pelo melhor informante e intermediário que eu poderia ter: o que cuidava de enviar seus Euros, transformados em Reais, para o Brasil.

Havia uma que chorava (muito!) quando a entrevistava diretamente, em particular. Quando voltava a se juntar com as outras, fingia estar contentíssima e dizia que até gostava da vida e da clientela. Me piscava o olho, discretamente, em confidência e confiança. Minha modesta formação teatral não chegava aos pés daquela grande atriz, levada pela vida a encenar naquela circunstância.

Nesta semana, soube que a história de uma delas, de pseudônimo Berta (assista o vídeo aqui: https://www.youtube.com/watch?v=eOZIPurlffU) virou campanha global da mais importante ONG do Mundo, em minha opinião: Anistia Internacional. Me alegro por mais este trabalho. E me entristeço ao lembrar aquelas visitas.

Nem todas eram trabalhadoras sexuais. Esta não deveria ser uma associação automática entre o Tráfico de Seres Humanos e o Tráfico de Drogas. Mas não posso negar as conexões. Os machos que lucram são quase os mesmos. As que sofrem, também.

Sobre o abraço que eu dei, o fiz cumprindo o protocolo de visitas que me informaram, na recepção do presídio: somente diante de uma funcionária, como testemunha e medida de precaução administrativa. Nem por isso, com menos gosto: abraço não se dá se também não se recebe, abertamente, como os braços.

Aquele abraço.

Barcelona, 31 de outubro de 2020, como se fosse em Caldas Novas, interior de Goiás.

Flávio Carvalho (@1flaviocarvalho) é sociólogo e escritor.

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