O exílio e o retorno
Por Cesar Vanucci *
“Sua fé foi sempre muito grande.” (Frei Manoel, dominicano, irmão da Madre)
Do México, recolhida ao Convento das Irmãs de São José de Lyon, onde permaneceu em exílio forçado até a anistia em 1979, Madre Maurina Borges da Silveira encaminhou inúmeras correspondências às autoridades brasileiras, pedindo permissão para regressar a terra natal. Existem indícios de que, em alguns setores do governo, houve quem se desse conta, em dado instante, da necessidade de se proceder a um reexame do doloroso caso da freira impiedosamente alvejada pela boçalidade e paranoia dos agentes da lei.
Em julho de 1971, a 2ª Auditoria da 2ª Comissão da Justiça Militar aconselhou o retorno da Madre. Esse posicionamento, unânime e inédito, foi tomado num período ainda de violenta repressão. Pode ser interpretado como indicativo de que algumas pessoas no mundo oficial mostravam-se preocupadas, de certa maneira, com o tamanho do abacaxi que teria de ser, mais adiante, forçosamente descascado na tentativa de se oferecer uma explicação para as ignomínias praticadas contra Maurina. A sentença em questão, segundo revelado pelo antigo “Jornal do Brasil”, levou em consideração que “provas colhidas em Juízo” autorizavam “a presunção de que Maurina foi incluída na lista de presos a serem trocados pelo cônsul do Japão, por insidiosa manobra de guerra psicológica, por parte dos militantes da subversão.” Na mesma decisão, fazia-se a ressalva de que a religiosa “suplicou, até o último momento”, antes do embarque rumo ao México, para que a deixassem ficar no país.
De algum modo, o Ministro Alfredo Buzaid sensibilizou-se com o argumento. Chegou mesmo a elaborar exposição de motivos ao então Presidente Médici com minuta de decreto até assinada revogando o banimento da freira. O expediente ficou paralisado até junho de 76, alcançando, já aí, o governo Geisel. O sucessor de Buzaid na pasta da Justiça, Armando Falcão, deu andamento ao processo retido emitindo parecer conclusivo nos seguintes termos: “Minha opinião é contrária à concessão da permissão da vinda da interessada, por inoportuna e inconveniente. Vossa Excelência, entretanto, no seu alto critério, se dignará de decidir como mais acertado lhe parecer.” Conforme ainda o JB, Geisel decidiu. Fechou com Armando Falcão.
Madre Maurina continuou, à vista disso, a amargar o indesejado exílio. Nessa tormentosa fase, seu pai, Antônio Borges da Silveira, veio a falecer. Negaram-lhe também o direito de comparecer ao sepultamento.
De volta ao Brasil, beneficiada pela anistia, a religiosa retomou suas atividades na congregação franciscana, com o mesmo inquebrantável espírito de fé que marcou toda sua trajetória de vida, dedicando-se ao trabalho apostólico de sempre.
Em 5 de março de 2011, aos 87 anos de idade, cercada do carinho das colegas de hábito, em Araraquara, Estado de São Paulo, Maurina deixou este mundo. Embora as vicissitudes enfrentadas, registradas parcialmente nesta sequência de artigos, a morte desta freira valorosa, mineira de Perdizes, condenada ao martírio num momento trevoso da história brasileira, passou inexplicavelmente desapercebida aos olhares da mídia e dos próprios órgãos de defesa dos direitos humanos.
Tanto quanto pude constatar, o reverente pronunciamento do Deputado Adelmo Carneiro Leão, sobre sua vida e obra, na tribuna da Assembleia Legislativa, estranhavelmente sem repercussão midiática, foi o único registro significativo feito em Minas Gerais a respeito do caso. Na internet, colhi também alguns dados que serviram de fonte para a elaboração destes artigos. No mais, o que prevaleceu foi um inexplicável e sepulcral silêncio. Não sei dizer, mas ponho-me a fazer elucubrações a propósito, se essa ausência de registro, pelo menos por parte das organizações de direitos humanos, tenha decorrido de o fato da religiosa não haver, ao contrário do que a acusavam seus algozes, se inclinado por qualquer tipo de militância política. Circunstância, cá pra nós, que não deveria ser de molde também a justificar a falta de divulgação.
Na sequência o final do relato.
Hipocrisia e dedodurismo
“… pelo menos 15 crianças eram filhas de mães solteiras e ricas.” (Revelação de Madre Maurina)
Frade Manoel, dominicano, pouco antes da partida de Maurina, não escondendo imensa ternura e orgulho em relação à irmã, comentou o sofrimento inaudito que seu martírio impôs à família. Contou, ainda, que numa das sessões de tortura a que foi a freira submetida, ela clamou por Deus, dizendo aos torturadores que Ele estava ali presente. Deu pra perceber que alguns deles sentiram-se, momentaneamente, abalados com aquela invocação, dando sinais de medo.
Apesar dos suplícios porque passou, Maurina perdoou-os a todos. “Sua fé foi sempre muito grande”, é o sacerdote ainda que afirma, acrescentando que duas moças, torturadas juntamente com Maurina, vieram a se converter ao catolicismo inspiradas nos exemplos de fervor transmitidos pela religiosa no período de reclusão.
Reservei para os leitores, no fecho deste relato acerca do martírio imposto a Madre Maurina Borges da Silveira por bestiais agentes da lei no período da ditadura, uma revelação intrigante. Tem-se aí configurado um retrato impecável da hipocrisia e farisaísmo imperantes em certos ambientes mundanos. Ambientes esses sempre propícios, em momentos de terror político, às práticas do dedodurismo encapuzado e do denuncismo irresponsável. A própria freira contou a história ao jornalista Luiz Eblak, num papo de várias horas.
Tomei conhecimento da entrevista consultando a “Wikipedia”, logo após ser informado da notícia do falecimento da religiosa. Falecimento cercado de injustificável silêncio midiático, como já anotei, ocorrido em 5 de março 2011.
Pergunta do repórter a Maurina: – “De onde acha que vieram os boatos sobre a senhora, como o episódio de seu envolvimento com guerrilheiros?” A resposta surpreende, deixando subtendidos os malefícios irreparáveis à dignidade humana que ocorrem em momentos de desmandos autoritários.
“Tem uma coisa – registra a religiosa – que eu nunca disse a ninguém. É sobre os ricos de Ribeirão Preto. No “Lar Santana”, que eu dirigia, tinha muita criança filha de mãe solteira e rica, o que era escândalo social para a época (1969). Então, as crianças ficavam lá, mas o lugar era para os pobres. Eram cerca de cem crianças e pelo menos 15 eram filhas de mães solteiras e ricas. estavam tomando o lugar dos pobres. As famílias davam cheques para nós e tudo o mais, mas o correto era que as crianças vivessem em suas casas. O que eu fiz? Devolvi as 15 crianças. Fui à casa de cada uma delas e as devolvi. E eram mansões, casas enormes. Eu disse para as famílias: “O Orfanato é lugar de criança necessitada que precisa de um recanto para viver, que não tem pai nem mãe.” Acho que isso acabou influenciando de algum jeito o que me ocorreu depois. Não sei quem eram as famílias, mas isso deve ter tido ligação com a minha prisão.”
A outra pergunta sobre se a freira sabia das atividades consideradas subversivas, que os estudantes desenvolviam na sala em que se reuniam no Orfanato, Maurina responde: – “Não sabia de nada. Só sabia do “Movimento de Estudantes Jovens”, mas nada mais. Nem desconfiava. Um dia, o pessoal do MEJ me pediu para fazer uma palavra sobre o amor. Nem dá pra imaginar que gente de um grupo guerrilheiro pudesse interessar por palestra de uma freira sobre amor.”
A “Editora Vozes” lançou, há alguns anos, um livro da jornalista Matilde Lemos, intitulado “Sombras da Repressão – O Outono de Maurina Borges”. A história é baseada em entrevistas. Outro autor, Jacob Gorender, também fala do caso Maurina em seu livro “Combate nas Trevas”.
Quem sabe se, mais adiante, alguém não se animará a produzir documentário para cinema ou televisão a respeito da tragédia de Maurina. Até mesmo como uma forma de expressar a repulsa da esmagadora maioria dos cidadãos que acreditam e confiam nos valores da democracia e no respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana e que abominam toda forma de totalitarismo, sustentada pelo arbítrio, a esses valores e direitos.
* O jornalista Cesar Vanucci (cantonius1@yahoo.com.br) é colaborador do Blog Mundo Afora