Torres humanas e independência da Catalunha. Tocar o céu é o limite
*Por Flávio Carvalho
De tanto interesse, curiosidades e perguntas que me chegam do Brasil sobre o processo de independência da Catalunha, decidi expressar meu ponto de vista comparando-o com uma das mais importantes expressões culturais catalãs: os castells (castelos ou torres humanas). Quatro sentimentos, bem agrupados, descrevem as torres humanas que, desde o ano 1770, são erguidas nas praças públicas desta parte Nordeste do que hoje se conhece como o Estado Espanhol: força, equilíbrio, valor e seny.
Este último elemento, expressão típica da língua e peculiar característica da cultura catalã, pode traduzir-se por “bom senso”. O seu oposto existe e se diz rauxa, também em catalão. Ao meu ver, estes quatro elementos também servirão para apresentar-lhes o independentismo catalão. Em primeiro lugar, a força de um castell será sempre a sua sólida base humana, social e de cultura popular tradicional. Chama-se pinya (pinha) o grupo de pessoas que compõem o “andar térreo” do castell, de forma tão unida que quase nem passa um vento.
Na Catalunha, em pouco menos de 5 anos, dos 10 em que aqui vivo, sou testemunha participativa de como as pessoas mais normais e diversas do mundo foram ocupando as ruas e praças, e logo as urnas. Um fenômeno de participação social de longa trajetória e que nunca havia chegado tão longe, contra todo o conservadorismo e imobilismo do atual governo espanhol (a maior fábrica de independentistas da história, como hoje se diz na Catalunha).
Em segundo lugar, um castell se ergue com joelhos bem flexionados e papéis estrategicamente definidos para cada imprescindível participante, em uma perfeita arquitetura e engenharia humana que absorve tanto os “pesos pesados” quanto indivíduos mais leves. Em equilíbrio puro, congrega quase todas as classes sociais e origens diversas, onde todos são protagonistas. Em terceiro lugar, para mim, que faço pinhas a mais de 10 anos (e gostaria de ser mais frequente do que eu posso), o principal valor é dado pela condição humana: tocar o céu e querer sempre mais do melhor.
De antes ser considerada impossível a autodeterminação de tudo um povo, concordo com a opinião do treinador de futebol Pep Guardiola, quando ontem disse que a independência da Catalunha agora é só uma questão de tempo, pacificamente e alegremente movida pela soma de forças de vontade. Daí, chegamos ao bom senso, ao interessante seny catalão.
O auge de um bom castell é determinado pelo seu futuro, pelos petits (pequenos) castellers. Uma criança, chamada enxaneta, ergue a mão como se fosse tocar o céu. Casteller desde pequeno, decide o seu próprio futuro – sem esperar que lhe caia do céu. A metáfora final é dada pelas enxanetes: se essa criança não vê clara a possibilidade de subir e de erguer a mão no alto do castell, nem o mais importante adulto pode obrigá-la a fazer o que não quer. O direito de decidir é cada vez mais consagrado na Catalunha. Liberdade de escolher o próprio futuro é algo que se conquista com força, equilíbrio, valores e bom senso. Os convido a conhecer melhor essa história.
Flávio Carvalho, sociólogo brasileiro que mora em Barcelona, também é sócio dos Castellers de Vilafranca.