Além de Paris: O apocalipse como argumento

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Jihadistas acreditam que chegou a hora da “batalha final”

Entender como pensam e o que move os jihadistas é a chave para combatê-los, segundo editorial assinado neste domingo, 15 de novembro, pelo jornalista Vicent Partal, diretor do jornal eletrônico Vilaweb (www.vilaweb.cat).
Em “Além de Paris: O apocalipse como argumento”, o especialista em política internacional faz uma detalhada exposição dos caminhos que podem ser seguidos para tentar frear a ação assassina dos terroristas que agiram mais uma vez na última sexta-feira em Paris, banhando a capital francesa de sangue. Os jihadistas creem (de verdade) que o apocalipse está próximo e que é hora da “batalha final” em função da entrada da Rússia na guerra da Síria.
O texto é contundente e esclarecedor. Abaixo a tradução em português e neste link o acesso à versão original em catalão. Vale apena a leitura.

PartalPor Vicent Partal

Não é fácil escrever sobre os episódios, chocantes, de Paris, sobre a matança de mais de uma centena de pessoas que apenas queriam jantar ou assistir a um concerto de rock, uma partida de futebol.  A dor e o horror, porém, não podem apagar o debate e precisamos agora mais do que nunca chaves para entender como é possível que estejam passando estas coisas e porque passam assim. Para encontrar as razões, contudo, é preciso ir além dos fatos pontuais, por mais dolorosos e amargos que sejam.
Não quero tirar nem um grama de valor a Paris e a sua gente nem desmerecer, por um só instante, o que passaram e o que significam e significarão para a humanidade.
Contudo o atentado desta sexta-feira não era “contra Paris” apenas. Nem somente “contra França” ou “contra Europa”. Creio que é um erro fazer esse reducionismo. Paris para os autores dos ataques era simplesmente a oportunidade, a opção mais simples, o lugar onde poderiam atacar com mais garantia, muito provavelmente porque a maioria deles deve ser parisiense.
Isso não são as Torres Gêmeas, para o qual necessitavam de uma preparação e uma sofisticação enorme para perpetrar um atentado que estava ao alcance de pouca gente. Possíveis e assumíveis para jovens com uma preparação escassa, o mais difícil era obter as armas e é sabido que isto não é uma grande problema desde a queda do regime líbio que comportou o caos e o descontrole dos arsenais daquele país, a poucos quilômetros da Europa.
Mas se não era um atentado contra Paris de que se trata? Seguramente era sobretudo o resultado da enorme excitação produzida nas últimas semanas nos ambientes jihadistas pela entrada da Rússia na guerra da Síria. Excitação porque na sua mentalidade tão estreita, reforça a ideia que faz meses que é propagada e que os faz crer que esta é a batalha final, o prelúdio do apocalipse.
Não entenderemos nada se não compreendermos que esta gente crê que o mundo está a ponto de acabar-se, literalmente, através de um apocalipse que acontecerá na Síria.
Eles estão convencidos que faltam poucas semanas, poucos meses para o fim do mundo. Creem nisso e creem que devem lutar nesta batalha final. E todos os especialistas que fazem análises há anos, com rigor, coincidiram em documentar que a entrada da Rússia na guerra está sendo vista nas filas jihadistas como uma confirmação da iminência deste apocalipse.
De um apocalipse que tanto a tradição xiita como a sunita identificam sempre com “uma grande batalha”. Com a Rússia já combatendo na Síria a proximidade da “grande batalha” parece uma obviedade comprovada e parece que isso galvanizou até extremos desconhecidos o seu fanatismo. E os há motivado como nunca a matar. Onde fosse e como fosse.
É uma grande batalha que tem campo fixado: Dabiq. Segundo a tradição, nesta povoação ao norte de Alepo, na Síria, é onde haverá a batalha decisiva contra “os romanos”, que abrirá a porta à vinda do mensageiro de Deus que implantará o novo mundo.
Não é casualidade que a revista editada pelo Estado Islâmico (EI) se chame Dabiq. Na publicação se afirma que o salvador, o Mahdi, já vive em Dabiq, esperando o momento adequado para falar. Não é anedótico que o EI tenha batalhado tanto para ter sob seu controle uma cidade sem nenhuma importância estratégica e basicamente agrícola, com grandes campos abertos que configuram um cenário ideal para uma grande batalha tal e qual como eles explicam e imaginam.
Para a nossa mentalidade laica e científica que alguém possa crer em coisas assim hoje em dia é simplesmente inconcebível. Entretanto, se não os entendemos não saberemos como combatê-los. Simplesmente.
Agora bem, a grande pergunta é o que podemos fazer contra isso? Que podemos fazer para parar esta gente e os atentados selvagens como este de Paris?
A resposta não é simples nem fácil. Quem diga agora nesta altura, depois destas décadas terríveis, que existe uma solução fácil e simples está mentindo. Contudo, como mínimo há duas coisas que são bem claras e que não estamos fazendo: Tirar-lhes o território, porque sem território não há califado, e aproveitar a indignação dos outros muçulmanos contra eles, em vez de converter todo o Islã em um inimigo que não é. Isso e assumir de uma vez por todas que não haverá solução enquanto Síria, o Estado sírio, não mude.
A questão de tirar-lhes o território é, contudo, especialmente perigosa e não pode ser feita de qualquer maneira. A radicalização frente ao milenarismo de uma parte do Islã é sobretudo a consequência, entre outras coisas, das ocupações militares e das guerras, no Afeganistão, primeiro pela Rússia e depois pelos Estados Unidos, e sobretudo no Iraque.
Para uma grande parte da opinião pública árabe e muçulmana estas foram guerras injustas que levaram a dor e o sofrimento a milhões de pessoas. Coisa que certamente é difícil de discutir. A ocupação militar na Síria e no Iraque por parte do ocidente não parece, então, que possa resolver nada a longo prazo Mas creio que a situação atual é muito pior.
O Estado Islâmico proclamou o califado e este califado, a sua existência, é o que atrai milhares de pessoas de todo mundo e que incentiva aqueles que não podem ir cometer atentados como os de Paris.
Contudo ao mesmo tempo esta é a sua grande fraqueza. Diferentemente da Al-Qaeda, que podia viver na clandestinidade e era muito difícil de identificar, o Estado Islâmico necessita ser um estado e para tanto possuir um território onde viver conforme o modelo religioso medieval que propõe – e que inclui disparates tais como o retorno da escravidão ou a crucificação dos infiéis. Tirar-lhes o território, então, equivaleria a uma derrota sem paliativos e desmontaria as fantasias que ao redor do mundo apresentam o crescimento deste califado como a prova suprema de que o apocalipse está próximo. A partir deste ponto de vista deve-se ter em conta também que o chamado Estado Islâmico hoje é pior do que há algumas semanas. Há indícios de que tem sérias dificuldades para controlar o território e, sobretudo, para governá-lo com certa capacidade. Há analistas que falam de colapso, expressão que agora mesmo eu acredito exagerada, mas, obviamente, este é um fator a ser monitorado de perto. Em qualquer caso, continuar o combate contra o EI como está sendo feito, com ataques aéreos, não servirá de grande coisa. Os curdos e os xiitas podem frear esta expansão, e isso é muito importante porque obriga os fanáticos a reconhecerem que as profecias que falam de uma rápida e constante expansão do califado não estão se cumprindo. Contudo não será suficiente.
Curdos e xiitas não entrarão nunca no território sunita, no coração da Síria e do Iraque. Não querem isso nem querem eles lá. Agora mesmo, contudo, são o bastião mais firme, – e neste sentido é preciso reivindicar já a existência de um estado curdo reconhecido internacionalmente e que se impeça que países como Turquia aproveitem de maneira irresponsável a guerra contra o EI para atacar precisamente os curdos. Agora, apesar de ser o bastião mais firme não são suficientes sozinhos e não o serão nunca porque o problema sério e real está em Damasco.
Estamos acostumados a ler o tabuleiro sírio em torno de diversos atores. Xiitas contra sunitas, governo contra oposição, curdos contra árabes, religiosos contra laicos. Esta leitura, porém, nos confunde a respeito a um tema que é central:
Bashar al-Assad e o seu regime não estão de acordo com o EI, mas é uma evidência fora de qualquer discussão que como mínimo não os combatem. E muito provavelmente fazem mais que isso. Outorgar a Assad algum papel neste conflito contra o EI é então um terrível erro. E Rússia e França, entre outros, haveriam de explicar porque continuam sendo tão maleáveis com o regime de Damasco.
Fazer alguma coisa séria na Síria, então, é a primeira e mais importante das obrigações se queremos evitar acontecimentos como os de Paris, mas assim mesmo não seria o suficiente.
E aqui é onde creio que deveria entrar em ação a segunda das táticas imprescindíveis, que não é outra senão ajudar os muçulmanos do mundo a levantar-se contra o EI.
Hoje já é bem evidente que esta é a segunda de suas fraquezas. Nem Al-Qaeda aceita a visão retrógrada do Islã proposta pelo califado. Entre outras razões porque quanto mais cresce o EI mais muçulmanos morrem nas suas mãos e mais indignação sentem muçulmanos do mundo inteiro por conta destas ações.
De novo: esta gente é um monte de fanáticos religiosos que acreditam estar próximo o fim do mundo. Não lhes importa nada, neste sentido.  Nem a quem matam nem se podem morrer eles. E por isso estão convertendo em um deserto humano o território que controlam.
Nas regiões que estão em suas mãos não podem viver cristãos nem judeus, nem também a maioria dos muçulmanos. Certamente nem xiitas nem tampouco qualquer muçulmano que duvide sobre a roupa que veste, o tamanho da barba ou se cortar o pescoço de alguém ou convertê-la em um escravo é legítimo.
Esta gente matou muitas pessoas em Paris, mas não esqueçamos que mataram muitos e muitos mais muçulmanos na Síria, no Iraque e no Líbano – 40 mortos nesta mesma semana em Beirute. Os refugiados que chegam desesperados a nossas fronteiras de que fogem senão de uma Paris repetida cada dia e cada noite desde faz anos?
O seu fanatismo religioso poderia ser neste sentido e um tanto paradoxalmente uma oportunidade. Al-Qaeda não cobrava uma submissão estrita a sua visão do Islã e tinha cuidado para não matar muçulmanos. O Estado Islâmico tem prazer de matar muçulmanos ímpios.
Por isso se sempre é um erro converter qualquer conflito em um conflito de religiões é ainda mais grave neste caso. Os muçulmanos que não seguem a sua ortodoxia são os seus primeiros inimigos seus e isso pode ser muito importante na hora de isolá-los.
É preciso que as comunidades muçulmanas sejam duras e contundentes em sua rejeição, mas é também preciso evitar de todas as maneiras que estes atentados sejam apresentados ou entendidos como uma guerra de religião.
Não se pode colocar os muçulmanos em conjunto no bando do EI sem criar um problema ainda muito mais grave do que o que temos. E sobretudo não se pode colocar os muçulmanos na perspectiva de ser massacrados, seja pelo Estado Islâmico seja pelo Ocidente.
E os europeus temos que ser particularmente cuidadosos com isso. Não apenas por tática. Mas também porque não podemos fazer isso sem destruir as bases da nossa sociedade. O Islã é uma religião europeia hoje também, agrade ou não agrade. E nos nossos países os muçulmanos já não são mais  uma anedota e sim uma parte da cidadania. A intransigência necessária contra o EI não pode se transformar em intransigência contra contra o Islã, entre outras razões porque causar a guerra civil é uma das razões mais evidentes e confessadas dos atentados como o de Paris.
Cometemos muitos erros durante muitos anos. Desde o suporte permanente a Arábia Saudita até a traição dos ideais democráticos na Argélia ou no Egito. Desde o caos criado na Líbia até o caos que deixamos que continue na Síria. Desde a insensibilidade pelo que representa a Palestina até a falta de interesse para entender que o Islã é uma religião tão plural quanto o cristianismo e tem tantas faces como ele. Agora temos a responsabilidade de não cometer mais nenhum erro, mas sobretudo temos a obrigação de não piorar mais ainda uma situação das mais complicadas que nunca poderíamos ter imaginado.

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