Não à satanização da vida

Por Cesar Vanucci *

Sim à esperança!” (Joseph Biden, 46º Presidente da República dos Estados Unidos da América)

Mas que eleição! Parece ter sido produzida por Hollywood, num momento de suprema inventividade. Galvanizando compreensivelmente as atenções universais, a eleição nos Estados Unidos proporcionou, em inesperados desdobramentos, arrebatadoras emoções de toda ordem. Não faltaram, nem mesmo, “suspenses” de tirar fôlego do mais imperturbável espectador. A realidade nua e crua desse marco histórico na política internacional atraiu todos os olhares para um enredo e protagonizações em condições de suplantarem, sem sombra de dúvida, as cenas mais criativas e empolgantes das clássicas superproduções fílmicas. Aquelas que têm o condão de deixar marcas duradouras na lembrança.

Mas o que de melhor e mais altamente positivo ocorreu e está sendo efusivamente celebrado no eletrizante acontecimento – que conferiu dimensão global a uma jornada cívica concentrada num só país – foi mesmo a mensagem de cunho definitivo deixada pelos eleitores nas urnas. Foi dito ali, alto e bom som, com todas as letras, pontos e vírgulas, um categórico e sonoro NÃO ao nefasto esquema de satanização da política e da vida. 

O triunfo de Biden, político experiente, de índole democrática, aberto ao diálogo, conciliador, deu voz ao inconformismo da maioria consciente da coletividade, rechaçando os impulsos belicosos, as propostas negacionistas, de mórbido antagonismo à ciência e às conquistas humanísticas, de Donald Trump. O pleito teve, sim, caráter plebiscitário. Foram objeto de julgamento, avaliação e inapelável condenação as reações frisantes, diante da vida, do ainda ocupante da cadeira presidencial na Casa Branca.

A arrogância do birrento Trump, seu despreparo intelectual, sua retórica monótona e inconsistente, sua visão distorcida das causas ambientais, seu solene desprezo aos direitos fundamentais, sua forma de tratar imigrantes, de lidar com as minorias, com as diversidades comportamentais, seu empedernido racismo – tudo isso pesou, pra valer, na decisão contrária à recondução. E não há como ignorar que do resultado do referendo brotou uma sensação de alívio enorme, tanto dentro quanto fora dos Estados Unidos.

Haviam temores de que às agruras presentemente vividas pela sociedade, à conta de uma escolha errada, pudesse se juntar a penosa permanência, numa posição influente em termos mundiais, de um cidadão emocionalmente instável. E justamente numa quadra da existência humana e do processo civilizatório que exigem lideranças capazes e competentes, sintonizadas com o sentido da vida.

Dissipados, felizmente, tais receios, a opinião pública mundial coloca-se na espera de acenos convidativos e promissores por parte da dupla apontada para liderar a grande potência. É relevante consignar o fato de que a vice-presidente eleita, Kamala Harris, detentora de currículo fulgurante, primeira mulher a exercer a função, é negra, filha de pai jamaicano e mãe indiana, sendo casada com um judeu. Todas essas realçantes referências são de molde, sabido é, a desagradar fundamentalistas, “supremacistas brancos”, milicianos da KKK e de outras organizações que pregam ódio e preconceito.

Mas, com inabalável certeza, servem para exaltar a transcendência deste momento de renovação política que engrandece a crônica americana e repercute, de forma imensamente simpática, em todos os cantos do planeta onde os democratas batalham em favor da igualdade social e da dignidade humana.

As primeiras palavras dos que chegam vêm ressoando de forma a gerar universalmente radiosa expectativa e ardente esperança. O tom do papo é outro. As propostas anunciadas expressam fé, confiança, solidariedade, paz, união, concórdia. Diferem da prosa boquirrota e vociferações do presidente que, mesmo contra a vontade, vai ter que passar a faixa ao sucessor. A tragicômica disposição de Trump em contestar a vontade popular, agredindo irracionalmente as instituições democráticas de seu país, não passa de show de bravatices a ser brevemente interrompido.

A lei, a consciência cívica da nação e as opiniões de influentes vozes da própria facção republicana, compartilhadas pela opinião pública internacional, reconhecem sem tergiversações a legitimidade dos resultados. Trump vai ter que deixar o palco. Os protagonistas agora são outros. O enredo mudou.

Por derradeiro, uma menção ao sistema de votação dos EUA. Incompreensível demais da conta, o anacronismo do processo ainda vigente num país vanguardeiro em tecnologia de ponta.  As narrativas dos pormenores do esquema deixaram a impressão estranha de que os expedientes de votação e apuração utilizados implicam numa mescla de eleição a bico de pena com eleição na base da “marmita de cédulas”. Coisas, cá pra nós, de maneira a deixar-nos ufanos, bastante recuadas na linha do tempo quando se tem em mira a avançada experiência eleitoral brasileira.

O jornalista Cesar Vanucci (cantonius1@yahoo.com.br) é colaborador do Blog Mundo Afora.

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