Justiça revela complô para assassinar urso nos Pirineus

Parte da investigação secreta sobre a morte do urso Cachou foi tornada pública e aponta envolvimento de políticos, membros do governo do Vale de Aran, caçadores e criadores da região

Quem Matou Cachou? Está é a pergunta que a justiça tenta responder na primeira investigação secreta sobre a morte de um urso no Vale de Aran, uma comarca de montanha nos Pirineus catalães. Semana passada, após oito meses da morte do animal, a juíza que leva o caso tornou pública parte do processo que vem sendo tocado desde então, apontando para um complô supostamente planejado com participação de criadores de cavalos, caçadores, políticos e membros do governo local da região.  

Urso Cachou em foto de 2017
Resposnsáveis pela morte de cachou teriam tramado assassinato em grupo de WhatsApp

O apetite voraz do urso, que teria atacado a potros, éguas e rebanhos que pastavam nas pradarias dos Pirineus atiçou a ira de moradores da região contra o programa de reintrodução da espécie na região, financiada com fundo europeu. Os responsáveis pela morte do animal, por envenenamento segundo a necrópsia, teriam planejado tudo através de um grupo de WhatsApp do qual participavam mais de cem pessoas.    

O corpo de Cachou foi encontrado em 9 de abril passado numa área arborizada do município aranês de Les, perto da fronteira com a França. Assim que a notícia veio a público, o governo aranês se apressou em dizer que a morte do urso havia ocorrido ao cair de um precipício após brigar com outro animal.  

A versão não convenceu os membros da organização ambientalista IPCENA. “Fiquei desconfiado com a expressão facial, uma vez que tinha uma careta como se estivesse sorrindo, típica de casos de envenenamento”, explica o porta-voz da IPCENA, Joan Vàzquez. Normalmente, essa reação é causada especificamente por um produto presente no anticongelante automotivo.  

Desde então, a juíza do município de Vielha vem investigando o caso  que envolve inclusive o Conselho Geral de Aran, o governo comarcal. O processo está aberto por crime contra a fauna e até agora são seis os réus, entre eles um político da oposição ao governo aranês, José Antonio Boya, e dois agentes ambientais do Conselho Geral de Aran. Um dos agentes fazia parte da unidade de rastreamento de ursos financiada com fundo europeu e é filho de um histórico prefeito de Les. Esse agente teria facilitado os dados da geolocalização do urso aos seu algozes. Já foram ouvidas 15 testemunhas.  

A juíza tenta apurar se o investigado traçou um plano para matar o urso, coordenando por meio de ligações e WhatsApp. Como pano de fundo da morte de Cachou está a oposição aberta ao programa de reintrodução do urso na região por grupos de caçadores e pecuaristas de Aran. Apesar de pesquisas de opinião realizadas inicialmente terem detectado apoio da população local ao programa, os ataques no último ano por Cachou a éguas e potros, fatos excepcionais na opinião dos especialistas, alimentaram a rejeição ao programa.  

Um grupo de caçadores de Les teria decidido passar do protesto à ação direta. É o que diz um relatório dos Agentes Rurais da Catalunha que faz parte do sumário do caso. O documento relata que um responsável pelo Meio Ambiente do Conselho incriminou Boya, secretário de Território no governo aranês entre 2015 e 2019 e líder da Convergência Democrática Aranesa. Ele inclusive foi responsável na época pela captação dos fundos europeus para o repovoamento do urso na região.  

Conforme explicado pelo responsável pelo Meio Ambiente, Boya “comentou publicamente em várias ocasiões que mataria os ursos com anticongelante”. O suspeito teria reiterado as ameaças, mesmo na presença do atual secretário de Território, Francisco Bruna, de outros funcionários do Gabinete de Agricultura e Pecuária do governo aranês e até mesmo em uma assembleia da associação de criadores de cavalos dos Pirineus.

A necropsia confirmou que a careta na boca de Cachou não foi acidental. Análise toxicológica realizada em 10 de abril pela Universidade Autônoma de Barcelona (UAB) detectou que a urina e os tecidos do urso apresentavam “elevado número de cristais de oxalato de cálcio monoidratado” e “lesões altamente compatíveis com envenenamento letal com etilenoglicol”, produto presente no anticongelante dos carros.  

A investigação dos Agentes Rurais também aponta para um envenenamento: perto da área onde o corpo de Cachou foi encontrado, os agentes acharam escondidos sob uma pedra “um pacote de remédio” e, alguns metros depois, “uma garrafa branca de cinco litros sem nenhum líquido”.  Em outra inspeção, os agentes localizaram uma câmera que é ativada por sensores de movimento, embora os investigadores não tenham encontrado nenhuma “fotografia de interesse”.  

Os efeitos do veneno sobre Cachou foram devastadores: o etilenoglicol provoca, nas primeiras 12 horas, disfunções do sistema neurológico e acidez intestinal, que nas 12 horas seguintes levam a insuficiência cardíaca e edema pulmonar. Se o animal ainda não morre neste período, após as primeiras 24 horas o veneno ataca os rins. No caso do urso aranês, a perícia concluiu que ele passou nove dias “em estado letárgico ou em coma”, já que o último dia em que o GPS detectou movimento em Cachou foi em 30 de março e o corpo foi encontrado em 9 de abril.  

Quem era Cachou?

Regalessia
Nome do urso refere-se às famosas pílulas francesas de regaliz “Le Cachou”

Cachou nasceu em 2015 nos Pirineus franceses. Seus pais eram ursos que foram transportados anos atrás desde as montanhas dos Balcãs, na Eslovénia, até a França pelo programa de reintrodução. Seu nome foi escolhido através de uma consulta popular em 2015 nas escolas da região do Alto Garona (Haute-Garonne) e referendado na Internet. O nome refere-se às famosas pílulas francesas de regaliz “Le Cachou”.

Ao se tornar adulto, dispersou-se no Vale de Aran, semeando o terror entre os pastores e criadores de cavalos que mantém os animais pastando livres nas montanhas no verão e outono. Nesta época, recebeu um colar GPS para controlar seus movimentos.

A agitação entre os pecuaristas fez com que políticos das regiões pirenaicas se reunissem em Madri, na sede do Ministério de Transição Ecológica, para estudar a revisão do Protocolo de Intervenção com ursos problemáticos e permitir a possível extração destes espécimes do meio ambiente. Em outubro, os técnicos da patrulha do urso de Aran testaram o uso de aversivos químicos em carniças de cavalos a fim de forçar uma mudança nos hábitos alimentares de Cachou. Essa estratégia teria dado certo e o urso deixou em paz o gado. Mas em 9 de abril, logo após acordar da hibernação, foi morto.

O urso pardo é uma espécie que sempre esteve presente nas montanhas dos Pirineus. Em meados dos anos 90 esteve à beira da extinção local e iniciou-se o programa de reintrodução nessas montanhas. Atualmente a população se recuperou e tem mais de 50 exemplares, mas continua catalogada como em perigo crítico de extinção na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN).

MAIS INFORMAÇÕES:

Paratges. Revista_IPCENA_2008_41

 

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