Festa dos ursos esquenta Carnaval nos Pirineus

Prats de Molló La Presta, Arles de Tec e Sant Llorenç de Cerdans são invadidas por visitantes que participam com a população da tradicional Festa do Urso, brincadeira carnavalesca de origem ancestral

Urso e caçadores descem a montanha em busca de “presas” em Prats de Molló

Os domingos de fevereiro são ansiosamente esperados em três pacatas cidades do interior dos Pirineus, onde acontecem as tradicionais Festas dos Ursos. A brincadeira carnavalesca, de origem ancestral, enche de calor e animação os dias frios de inverno em Prats de Molló La Presta, Arles de Tec e Sant Llorenç de Cerdans, na Catalunha Norte, região cedida à França em 1645 pelo Reino da Espanha.

A população local e os numerosos turistas, entre eles provenientes de Barcelona, Girona, Montpellier ou Toulousse ficam à espreita dos quatro ferozes homens-ursos que descem das montanhas após um largo tempo de hibernação. É a época na qual finaliza o inverno e se prenuncia a chegada da primavera. Há séculos atrás este era o período em que os animais despertavam do sono profundo e saíam em busca de comida, muitas vezes atacando rebanhos.

O terror que gerava tal visita na sociedade agrícola dos Pirineus é retratado na festa que resistiu a gerações e se consolidou como um dos acontecimentos culturais com apelo turístico mais importantes da região. Em Prats de Molló, onde tive a oportunidade de participar da festa no último domingo, 9 de fevereiro, o espírito da brincadeira se espalha por todas as ruas da pequena cidade cercada de montanhas nevadas, com uma maravilhosa vista para a mítica Canigó. 

Multidão segue ursos na festa de Prats de Molló. Foto: Gerard Sauret

Moradores e turistas aguardam desde a primeira hora da tarde a passagem dos quatro ursos que descerão a montanha onde está encravado o Forte da Guarda, atacando quem encontrar pela frente. Os personagens, vestidos com pele de cordeiro e com o rosto e braços untados de negro, são escoltados por um séquito de caçadores levando espingardas. Cada vez que um urso consegue fazer uma nova vítima, os caçadores anunciam o feito com disparos para o céu.

O cortejo sai a partir das 14:00, acompanhado pelo som de grupos de músicas locais no qual se destaca o som de gralhas, um tipo de clarinetas artesanais. Numerosas pessoas enfrentam a subida íngreme até o forte, para aguardar os ursos na saída da fortificação onde se preparam para o ataque.

As presas mais alvejadas pelos ursos são as mulheres. Isso porque há uma lenda de que há muito tempo atrás um urso raptou uma bela jovem e a levou para a sua caverna, onde lhe trazia os melhores frutos da floresta. O urso se apaixonou pela mulher, que o recusava e finalmente conseguiu fugir. Quando retornou à caverna e se deu conta da fuga, o urso rugiu com tanta raiva que ecoou por todos os Pirineus.

Por isso, os personagens-ursos também rugem com força ao sair do forte e por onde passam. Ao dar o bote, os ursos se abraçam a suas presas, se jogam no chão, onde dão vários giros pela terra. Desta forma sujam completamente a pessoa atacada com a tinta negra – uma mistura de azeite e fuligem – com a qual se besuntam após cada investida. Por isso, a recomendação para quem assiste o desfile é ir com roupa velha.

Os ursos agarram as “presas”, que são jogadas no chão e sujos pela tinmtura preta que compõe sua idumentária

Apesar de darem preferência às mulheres, os homens também padecem nas mãos dos ursos. Muitas vezes, o urso joga para sua presa o grande bastão de madeira que carrega ensaiando uma luta que é aplaudida pelo público. No primeiro despiste, o feroz animal e sua vítima vão ao chão, para delírio de quem está assistindo.

O prêmio de consolação às vítimas é um bom gole do vinho levado pelos caçadores. Há quem fuja das investidas, mas o que se percebe é que quem fica todo lambuzado de negro exibe a pintura como um troféu, com orgulho de ter sido escolhido pelos ursos. Muitas crianças acompanham a brincadeira e se percebe que os ursos têm muito cuidado com elas, pois apenas fazem marcas singelas em suas bochechas com a tinta negra, o que é bem recebido.

Outra “vítima” do urso, desta vez  durante a descida da montanha em Prats de Molló

Após descer a montanha e adentrar nas estreitas ruas de Prats de Molló os ursos vão se revezando nos ataques, sempre acompanhados de uma multidão. No final da tarde, já na área central da cidade é a hora da entrada em cena dos barbeiros. Homens vestidos de branco e pintados com a mesma cor, que chegam para tirar a pele dos ursos.

Munidos de correntes e carregando bacias com tinta branca, com a qual também pintam quem encontrar pelo caminho, os barbeiros perseguem e “caçam os ursos”. Quando se pensa que a brincadeira vai acabar, se torna ainda mais irreverente. Isso porque os barbeiros que levam os ursos soltam a corrente e os ajudam a “caçar” mais presas.


Participar da festa é superdivertido e aumenta a adrenalina de quem persegue ou é perseguido pelos ursos. Os homens que encarnam o personagem têm um fôlego imenso, pois não parecem se cansar de atacar, o que significa rugir, dançar, correr e rolar com a vítima pelo chão.

Multidão se diverte com performance dos homens-ursos dos Pirineus franceses

No domingo anterior à festa de Prats de Molló, a cidade de Arles de Tec realizou o seu cortejo, também com grande participação popular. No domingo (15), a próxima cidade a realizar a brincadeira será Sant Llorenç de Cerdan. Se você está por Barcelona, Girona, em território catalão ou no sul da França durante este carnaval é uma boa pedida assistir a uma das Festas dos Ursos. O espírito carnavalesco se espalha pelas ruas na sua melhor versão, na paz e com muita alegria. Como devem ser os bons carnavais.

PARA SABER MAIS

Embora o urso pardo foi extinto na região, justamente pela caça e a pressão das atividades humanas, nas últimas décadas tem sido reintroduzido em outros vales mais agrestes dos Pirineus centrais pelos governos respectivos da França e da Catalunha, com exemplares trazidos da Eslovênia.

Antigamente as festas do urso em época carnavalesca se espalhavam por muitos vales pirenaicos, como forma de reverenciar a este animal totêmico. Hoje em dia, apenas nas três cidades apontadas, na comarca catalã do Vallespir (Departamento francês dos Pirineus Orientais) se manteve em pé e com força a tradição. Cabe dizer que as respectivas prefeituras lutam com uma candidatura conjunta na UNESCO para que as festas sejam reconhecidas como patrimônio imaterial da Humanidade.

 

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