Mirla, a baiana que canta e encanta Barcelona alça voo na Europa com disco Afrobrasileira
Cantora baiana radicada em Barcelona lança Afrobrasileira, onde resgata ancestralidade, raízes culturais e conseuências da colonização do Brasil
Mirla recebeu o nome de um pássaro. Talvez a mãe intuísse que o canto seria sua paixão. Quis o destino e o seu amor pela música que sim. Nascida no bairro da Paz, em Salvador, Bahia, Brasil, agora ressoa seu canto na Espanha. Estabelecida em Barcelona desde 2018, está prestes a lançar o primeiro disco: Afrobrasileira.
Com composições próprias, o trabalho é uma homenagem à ancestralidade. Seu desejo? Transmitir o significado do que foi a escravidão no Brasil para os europeus. “Em toda Europa as pessoas parecem não tem consciência do que foi a escravidão, a colonização e suas consequências atuais”, reflexiona. Além disso, recupera um braço forte da brasilidade, que é a descendência dos povos originários. E como consequência, resgata a história da família, que se assemelha a muitas outras do imenso e desigual Brasil.
Não poderia ser diferente. Na veia Mirla carrega sangue africano e indígena. E tem plena consciência da riqueza destas culturas, em especial na religiosidadade e na gastronomia. “Desde criança sempre soube que sou afrobrasileira. Também sabia que o Brasil onde eu estava inserida não encontrava espaço na sociedade, apesar de sermos maioria. É preciso se orgulhar dos nossos antepassados, da nossa história“, explica.
A ideia de produzir o disco nasceu durante o confinamento aplicado na Espanha após o início da pandemia do coronavírus, em 2020. Por meio de decreto, o governo central estabeleceu o confinamento a partir de março daquele ano, obrigando a população a ficar em casa durante quase quatro meses. Depois, foram flexibilizadas algumas atividades, mas o mercado, principalmente o da cultura, ficou totalmente paralisado.
Com isso, os frequentes shows que Mirla realizava na capital catalã, foram suspensos. Ela atuava desde 2018 em Barcelona com o grupo Ganzá, acompanhada do catalão Marcel Vallés na guitarra e do baiano Jonas Santana na percussão. E antes da pandemia havia decidido por se aventurar numa carreira solo.
Apesar da tristeza de ficar impedida de cantar par o público, Mirla conta que aproveitou o tempo para criar. “No repertório dos meus shows havia músicas de autoria própria, mas a maioria eram de outros autores. Daí percebi que era o momento ideal para trazer à luz todo este sentimento que carrego dentro de mim“, resume.
A partir daí foi fazer contatos (por internet) e reuniões para decidir os passos a seguir. Na produção musical estão Alan Sousa e Marcel Vallés. Mirla também contou com a participação do maestro Letieres Leite (Salvador, Bahia) e dos músicos Childo Tomaz (Moçambique), Gabriel Grossi (Brasília), Jurandir Santana, entre outros.
As músicas incluem ritmos do candomblé e das canções das religiões de matriz africana. Para algumas das letras, em Iourubá, Mirla recorre ao livro Hamunyia, de Raul Lody (1992), editado pela Fundação Gilberto Freire, de Pernambuco. Afrobrasileira reúne ritmos tão diversos como Mirla. Há Ijexá, Vasse, Hamunya, baião, samba reggae, samba de roda, com mescla de influências do jazz, do soul, do rock e do blues.
CAMINHO – Quem viu Mirla nos palcos e vê (agora com shows já permitidos na Espanha) não têm a mínima ideia da história desta cantora de voz envolvente, que consegue cativar o público e fazê-lo cantar e dançar freneticamente. Com o objetivo de ter um futuro melhor, o pai, Noberto Florentino de Jesus, a matriculou no curso técnico de eletromecânica quando ela tinha 15 anos.
“Eu nem sabia o que era aquilo, mas fui em diante porque meu pai havia descoberto que o curso levava a uma profissão com bastante demanda de trabalho“, relembra. Assim, se dedicou durante quatro anos ao curso no qual a maioria dos estudantes eram homens. Se esforçou na física e na matemática, terminou o curso e começou a estagiar.
Depois começou a trabalhar fazendo a manutenção de máquinas industriais da área de construção civil em uma empresa de Salvador. Mesmo neste ritmo duro, Mirla levava consigo a música e o canto, para o qual despertou desde a infância quando cantava no quintal, escondida, as músicas que gostava. Incrivelmente, foi esse trabalho que mudou a vida de Mirla e a levou para a mundo da música.
Mirla saiu do bairro da Paz e foi para o centro de Salvador para estudar no Colégio de Engenharia. Trabalhava neste ofício de segunda a sexta-feira e nos finais de semana se reunia com amigos para cantar. “Nesta época a música para mim era um sonho. Era impalpável, como se eu não tivesse direito a fazer“, recorda.
Com o trabalho na área industrial, Mirla começou a juntar dinheiro com vistas a poder ter um suporte para finalmente se dedicar à música. Nos finais de semana, ia cantando e começando a compor músicas. Daí foram surgindo convites para cantar em bares de Salvador. E foi num destes locais que conheceu Marcel Vallés, o guitarrista catalão, com quem atualmente divide uma parceria musical e também uma vida em comum.
Marcel, natural da Catalunha, estava em Salvador para estudar violão brasileiro, e buscava alguém para fazer apresentações em duo. A parceria de apresentações musicais acabou em amor que segue até hoje. De Salvador, se mudaram para Catalunha. Primeiro para Reus, uma cidade no interior, onde se apresentaram em diversos bares e depois deram o salto para Barcelona.
Foi na capital catalã, onde com Jonas, criaram o gripo Ganzá, que desde 2018, realizou uma série de apresentações em diversos espaços, inclusive em festivais de jazz e em eventos de grande porte da cidade. Um deles, o Dia do Brasil, no Poble Espanyol, onde Mirla teve a oportunidade de abrir o show da sua ídolo de infância, Margareth Menezes. E mais: brilhar com luz própria em uma apresentação apoteótica na qual levou o público ao delírio.
FAMÍLIA – O nome de pássaro que recebeu ao ser batizada remete à aptidão de Mirla para o cantar. Mas não só isso. Reflete o seu espírito livre e leve. Quem a escuta pode constatar como ela voa sem perder de vista aos seus. A mãe, Maria Pereira dos Santos, desde os 12 anos, trabalhava em “casa de família” em Crisópolis, na Bahia, cuidando da casa e das crianças, como ainda é comum no “Brasil Feudal” ainda hoje.
O pai, Noberto, de Ilhéus, nasceu em terras de plantio de cacau, onde os filhos dos trabalhadores eram exploradas desde crianças, só conseguiu o registro de nascimento aos 18 anos. Contudo, se destacou por aprender a dirigir e se tornar motorista do patrão, o que lhe rendeu uma posição melhor entre os empregados.
O pai e a mãe de Mirla se conheceram em Salvador e foram morar em uma invasão, terrenos no qual famílias sem lares no Brasil ocupam para tentar conseguir moradia. E dalí nasceu o bairro da Paz, fruto de uma resistência cidadã que sobreviveu à demonização e conquistou a regularização depois de muita luta.
Foi extamente ali onde Mirla teve o primeiro contato com a música, participando dos projetos sociais que ensinavam as crianças do local a tocar instrumentos. Além disso, as crianças eram alimentadas, o que fazia uma grande diferença para quem participava e enfrentava uma rotina de penúria em casa.
Mirla também teve a sorte de ter um pai motorista, que à época conseguia trabalhos melhores, e permitia que a mãe pudesse ficar em casa para cuidar melhor os filhos. “Muitos amigos meus não tiveram esta sorte”. Com a participação nos projetos sociais, Mirla se destacou e aos 12 anos foi convidada para cantar em cima do trio elétrico do bairro da Paz durante o carnaval e daí descobriu o amor pela música.
Com Afrobrasileira, em Barcelona, concretiza não só um sonho. Contribui para difundir história e vida.
Vida longa a Mirla!